PERGUNTE E
RESPONDEREMOS 403/dezembro 1995
História
Esclarecendo a história:
SANTA JOANA D'ARC
CONDENADA E REABILITADA
Em síntese: Santa Joana d'Arc, jovem francesa, sentiu-se
chamada pelo Céu para defender a França, que se achava em guerra contra a
Inglaterra. Após brilhante vitória, que ela obteve chefiando um batalhão, foi
presa pelos ingleses que a levaram ao tribunal da Inquisição, acusando-a de
bruxaria - o que naquela época (século XV) era muito grave. Os ingleses
obtiveram a condenação de Joana sob o pretexto de mau comportamento da jovem.
Faleceu em 1431. Todavia pouco após a sua morte começou a ser reabilitada
mediante dois processos que investigaram os trâmites tendenciosos da
condenação: em 1455 a autoridade do rei de França inocentou Joana, ocorrendo o
mesmo no ano seguinte por parte da autoridade eclesiástica. A reabilitação se
consumou com a canonização de Joana d’Arc em 1920. - Para entender devidamente
o caso de Joana d’Arc, faz-se mister reconstituir a mentalidade de sua época,
como se verá nas paginas deste artigo.
* * *
A figura de Joana d'Arc tornou-se famosa tanto na
história da Igreja como na história universal, por ter sido condenada à morte numa estratégia, só
explicável pelas circunstâncias do século XV, e por ter sido prontamente
reconhecida como inocente tanto pelo poder civil como pela autoridade
eclesiástica. A fé e a entrega a Deus consagraram a pessoa da heroína, que
foi canonizada ou incluída no cânon (catálogo) dos Santos em 1920.
As páginas subseqüentes proporão o relato do caso.
1. OS PRECEDENTES
O cenário histórico em que
aparece Joana d'Arc, é o da guerra dita "dos Cem Anos"
(1337-1453) entre a França e a Inglaterra.
Em 1415 Henrique V da
Inglaterra invadiu a França com o intuito de derrubar o rei Carlos VI. Os
invasores encontraram apoio da parte da Borgonha, cujo duque Filipe o Bom
reconheceu Henrique V da Inglaterra como legítimo soberano da França; ao mesmo
tempo, Carlos VI, cuja saúde mental estava abalada, deserdou seu filho e nomeou
o monarca inglês herdeiro e regente do país. Em 1422, morreram Henrique Ve Carlos VI. O filho deste, Carlos VII,
fez-se coroar em Poitiers, e estabeleceu sua corte em Bourges, enquanto os
ingleses caminhavam em território francês e assediavam a cidade de Orleães. Carlos VII era figura fraca,
que nada fazia para deter os invasores, mas, ao contrário, permitia que homens
ineptos e gozadores dirigissem o seu povo.
Foi então que entrou em ação
uma jovem de 17 anos, que prometia salvar a França.
2. INTERVENÇÃO DE JOANA
Joana nasceu em Domrémy, de
família camponesa, aos 6 de janeiro de 1412. Não aprendeu a ler e escrever, mas
possuía profundo senso religioso. Aos 13 anos de idade, começou a ouvir certas
vozes, que ela identificou com as de S. Miguel Arcanjo, S. Catarina de
Alexandria e S. Margarida; exortavam-na a ir socorrer a França. A este propósito já se põe uma
questão debatida: as revelações que Joana anunciava e que se repetiram até a
sua morte, não terão sido mero fenômeno de alucinação? - Note-se que a alucinação significa um estado
patológico, fonte de falsos juízos e de comportamento moral descontrolado. Ora
em toda a conduta de Joana d’Arc não há vestígios de prostração física nem de
aberração intelectual ou de incoerência de dizeres e atitudes; ao contrário, clarividência e firmeza notáveis se manifestaram.
Torna-se, por conseguinte, difícil, se não ilógico, sustentar a tese das "alucinações".
Somente três anos mais tarde,
em 1428, a jovem resolveu atender aos apelos celestes. Um tio levou-a então à
presença do capitão Robert de Baudricourt, delegado do rei em Vancouleurs. Vendo-a,
o oficial desprezou-a, devolvendo-a a seu pai; este ameaçou afogá-la. Joana
voltou a procurar o capitão, impressionando-o por sua energia. Roberto mandou-a
ter com o rei Carlos VII, acompanhada por uma escolta de seis homens, que
deviam defendê-la na caminhada por estradas perigosas. A donzela pediu e obteve
também um cavalo e trajes masculinos (mais adaptados à missão militar que ela
empreendia). Chegando em Chinon aos 6 de março de 1429, Joana identificou o rei
dissimulado entre os seus cortesãos. Logo lhe pediu soldados para ir levantar o cerco de Orleães. Todavia
aquela jovem de 17 anos, vestida de trajes masculinos, não inspirava
confiança. Tendo insistido, Joana foi submetida a interrogatórios e exames
sobre a fé e a moral pelo espaço de três semanas; já que o laudo resultou
favorável, Carlos VII reconheceu o possível valor do empreendimento de Joana.
A situação para a
França era tão grave que somente uma intervenção do Céu poderia salvar a nação.
O rei concedeu-lhe
então
um pequeno batalhão destinado a ir socorrer a sitiada cidade de Orleães, que estava
para cair. Joana não combateria, mas estimularia os guerreiros, empunhando um
estandarte branco, sobre o qual estava a figura de Cristo entre dois anjos.
Finalmente, aos 8 de maio de 1429 os ingleses muito imprevistamente levantaram o
cerco de Orleães, dando entrada na cidade a Joana d'Arc e sua tropa.
Assim vitoriosa, a
jovem quis levar Carlos VII a Reims para que recebesse a sagração régia - o que se deu a 17 de julho de 1429. Ao lado do monarca, a
benemérita heroína lhe disse então: "Gentil roi, maintenant est
faict le plaisir de Dieu... Gentil rei, agora está feito o prazer de Deus".
Joana dava por finda a
sua missão, quando o rei lhe pediu continuasse a guerra. A donzela, dócil, muito
se empenhou pela reconquista de Paris, mas aos 23 de maio de 1430, perto de Compiègne,
foi presa pelos burgúndios, aliados dos ingleses. Estes a compraram pelo preço
de 10.000 francos-ouro, e a levaram para Ruão,
onde Joana deveria ser julgada. Aos ingleses interessava não apenas manter a
donzela encarcerada, mas também destruir o seu prestígio aos olhos do público. - Este plano haveria de
ser executado mediante pretextos religiosos que, para os homens da época, eram
os mais persuasivos.
3. A MENTALIDADE DO SÉCULO XV
Não se poderiam
entender adequadamente o processo e as maquinações empreendidos contra Joana d'Arc se não se levasse em
conta a mentalidade de ingleses e franceses da época:
a) Joana dera à sua missão militar um caráter religioso, dizendo que
Deus queria por seu intermédio libertar a França. - Por conseguinte, os
inimigos, para desprestigiá-la, tentariam demonstrar que Joana de modo nenhum podia ser enviada de
Deus, por estar sob a influência do demônio, como herege, bruxa, impostora, etc. - Caso isto ficasse comprovado,
também o rei Carlos VII perderia a sua autoridade; seria evidente que se aliara
a uma filha de Satanás, por obra da qual havia sido sagrado. Os franceses
poderiam então perder a esperança de obter a vitória final.
b) A mentalidade popular da época
era levada a crer que vitória obtida em guerra era sinal de que Deus apoiava o vencedor. Ora os ingleses haviam
conseguido um triunfo retumbante em Azincourt (1415), onde cinco mil
guerreiros tinham prostrado toda a cavalaria francesa, lutando um soldado contra
seis cavaleiros. Tão fulgurante vitória, pensava-se, só teria sido alcançada
com a colaboração do Céu; donde podiam muitos concluir que Joana contradizia ao
curso dos acontecimentos sobre o qual Deus já proferira o seu juízo.
c)
A
própria conduta de Joana se prestava a deturpações... As calamidades que
assolavam a França havia cerca de 75 anos, excitavam a imaginação popular,
provocando o surto sucessivo de falsos taumaturgos e visionários. Como naquela
hora se distinguiria Joana de uma Catarina de la Rochelle ou do pastor
Guilherme de Gévaudan, comprovadas vítimas da ilusão? - Além disto, o
espírito medieval podia facilmente escandalizar-se com a figura de uma jovem
vestida de cavaleiro a cavalgar junto com uma tropa de soldados; ora tal era o
caso de Joana. Ninguém concebia que uma virgem cristã se pudesse apresentar
nesses termos. Compreende-se então que muitos dos contemporâneos da heroína se
tenham podido iludir a seu respeito.
d)
Será
preciso levar em conta também a colaboração da Universidade de Paris, setor de
grande autoridade, que os ingleses ganharam para a sua causa. O espírito que
então animava os professores dessa instituição não era muito sadio. Tendiam a
considerar-se os luzeiros da S. Igreja; os mais moderados entre eles ficavam
céticos ao ouvir falar de Joana; muitos, porém, lhe eram energicamente
contrários. A pobre camponesa, com seus poucos anos de idade, deixava-se guiar
por pretensas visões mais do que pelas idéias dos professores; queria passar
por mais perita do que os capitães do exército, sem pedir vénia nem autorização aos doutos
lentes!
À
luz destas características da mentalidade da época, analisemos agora
4. O DESFECHO DA HISTÓRIA DE
JOANA
Os
ingleses, tendo que apelar para motivos religiosos na sua ação contra a jovem
guerreira, encontraram apoio valioso na pessoa do bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, todo devotado à causa dos
invasores e, por isto, refugiado em Ruão, território possuído pelos ingleses.
Não foi difícil encontrar
pretexto para se iniciar um processo contra Joana: as suas apregoadas mensagens
celestiais forneciam fundamento a acusações de bruxaria e heresia! Cauchon foi
constituído presidente do respectivo tribunal. Para dar ao júri o aspecto e a
autoridade de tribunal da Inquisição (tribunal oficial da S. Igreja!), chamaram
a participar da mesa o Vice-inquisidor de Ruão, Jean Lemaitre. Cauchon convidou ainda
grande número de assessores e jurados, aos quais o governo inglês fez saber que
tinha meios para os coagir, caso rejeitassem participar do processo; 113
juristas aceitaram a intimação, dos quais 80 pertenciam à Universidade de Paris.
O júri era de todo ilegítimo,
pois Cauchon não tinha sobre Joana nem a autoridade de bispo diocesano nem a de
legado pontifício. A Santa Sé não fora em absoluto informada da constituição de
tal tribunal.
Contudo o processo foi
encaminhado. A jovem sofreu maus tratos físicos e morais; submetida a
interrogatórios capciosos, que visavam a arrancar-lhe a confissão de heresia e
superstição, respondeu sempre com simplicidade e nobreza; chegou a apelar para
o Santo Padre: "Peço que me leveis à presença do Senhor nosso, o Papa:
diante dele responderei tudo o que tiver que responder". "Tudo que eu
disse, seja levado a Roma e entregue ao Sumo Pontífice, para o qual dirijo o
meu apelo!". Em vão, porém, apelou.
Finalmente, após peripécias
diversas, Joana foi fraudulentamente condenada qual herege, relapsa, apóstata, idólatra. Entregue ao braço secular,
sofreu a morte pelas chamas aos 30 de maio de 1431, enquanto olhava para o
Crucifixo e orava. Na última manhã de sua vida, ainda dizia Joana a Cauchon:
"Eu morro por causa de V.S.; se me tivésseis colocado nos cárceres da
Igreja, ... isto não teria acontecido."
A opinião pública viu-se
profundamente abalada pelo ocorrido. Apesar de todas as acusações, a massa do
povo ainda tinha Joana na conta de vítima da injustiça de seus inimigos.
Conseqüentemente, pouco depois de entrar solenemente em Ruão (dezembro de
1449), o rei Carlos VII deu início a uma revisão do processo condenatório, revisão que terminou favorável
à jovem. Seguiu-se em 1455 o
inquérito pontifício, já que Joana fora abusivamente sentenciada em nome da
Inquisição: após numerosos interrogatórios, o arcebispo de Reims, aos 7 de julho de 1456, perante
numerosa assembléia de clérigos e leigos em Ruão, publicou a conclusão do
"processo do processo", reabilitando a memória da donzela.
De modo oficial e solene, a
Igreja restaurou a memória de Joana d'Arc, reconhecendo-lhe os méritos e a santidade em 1920.
Por
que tanto se fez esperar essa completa reabilitação?
Os tempos que se seguiram ao
ano de 1456, foram de reação contra o espírito e a vida da Idade Média: na
época da Renascença o adjetivo "gótico" vinha a ser sinônimo de
"bárbaro"; quebravam-se os vitrais das catedrais para substituí-los por vidraças brancas;
o famoso poeta Pierre de Ronsard (+1585), imitador dos
clássicos gregos e latinos, qualificava o período medieval de "séculos
grosseiros"; mais tarde, Voltaire (+1778) e ainda Anatole France (+1924) mostravam-se diretamente
infensos
à jovem guerreira de Domrémy.
Foi preciso que a opinião pública em geral proferisse um juízo mais objetivo
sobre a Idade Média para se pensar em exaltar a figura tão caracteristicamente medieval de Joana d'Arc.
Em conclusão: a condenação de
Joana d'Arc é fato histórico profundamente doloroso. Jamais, porém, poderá ser
considerado fora do contexto do séc. XV, que bem o marca e ilumina.
Trata-se de um processo
inspirado por interesses políticos e nacionais e justificado perante a opinião
pública do séc. XV mediante pretextos religiosos (pretextos que podiam
impressionar naquela época). Lamentavelmente houve prelados e clérigos que se
prestaram ao papel de juízes de Joana d'Arc. Não procederam, porém, em nome da autoridade suprema
da Igreja, mas, sim, por autoridade a eles conferida pelo rei da Inglaterra.
Entende-se, pois, que a S.
Igreja, de maneira oficial e solene, tenha procedido à reabilitação e canonização de
Joana d'Arc.
Dom Estevão Bettencourt, O.S.B.
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